Sai o diretor, entra o policial
Diante da violência, PM assume colégios de Goiás, em medida criticada por especialistas
Demétrio Weber
NOVO GAMA E VALPARAÍSO (GO)- Um grupo de adolescentes se perfila em formação militar, enquanto uma
soldado armada os passa em revista. Nenhum deles masca chicletes. As garotas não usam batons ou esmaltes
chamativos. Nas conversas não se toleram gírias. Todos são obrigados a cantar o Hino Nacional na chegada, a
caminhar marchando e a bater continência diante do diretor. Não estamos num quartel, mas num dos dez colégios da
rede estadual de Goiás cuja administração começou a ser transferida para a Polícia Militar desde janeiro, numa medida
desenhada para amainar os repetidos casos de violência ocorridos numa região desassistida a apenas 40 quilômetros
do Distrito Federal. Duas das escolas sob o novo regime ficam nas cidades de Valparaíso e Novo Gama. Ali, a maioria
dos professores é a mesma do ano passado, e a metodologia pedagógica continua sob responsabilidade da Secretaria
estadual de Educação. Mas o diretor de cada unidade é um oficial da PM, assim como a equipe encarregada de manter
a “ordem”. Todos fardados e com armas na cintura.
A escolha dos colégios não foi em vão. O entorno do DF convive com problemas crônicos de violência. Desde
2011, a Força Nacional de Segurança Pública reforça o policiamento. Em Valparaíso, o Colégio Fernando Pessoa já
apareceu no noticiário policial depois que um ex-aluno foi assassinado a tiros ali. Em outra ocasião, uma professora
sofreu um sequestro relâmpago ao sair do prédio.
‘OPERAÇÃO LIMPEZA’ PARA CONQUISTAR COMUNIDADE
A vice-diretora do Fernando Pessoa, Glaucia Ermínia dos Santos, foi mantida no cargo e afirma que o cenário “é
outro” desde a chegada da PM:
— A questão disciplinar mudou gritantemente. Tínhamos problemas de tráfico de drogas e prostituição.
Professores tinham medo dos alunos. No Colégio José de Alencar, no Novo Gama, relatos semelhantes. Continuação da Resenha Diária 7/4/14 7
— Era tudo bagunçado. Tinha gente usando drogas nos banheiros. Agora até o bairro está mais seguro. O melhor
é sair e ver uma viatura na rua — diz a estudante Erisvânia Chagas, de 15 anos.
Em ambas as unidades, um mutirão chamado de “operação limpeza” foi posto em prática com o evidente intuito de
conquistar a comunidade. As paredes foram pintadas; as pichações, apagadas. Os próprios alunos se tornaram
responsáveis por sessões de vistoria nos banheiros e pela checagem da sala: se tudo não estiver arrumado, ninguém
sai. Até a lista de ausentes à aula é compilada pelos estudantes, no caso um deles, o chefe da turma. Se um professor
falta, nenhuma turma sai mais cedo.
O código de conduta segue os moldes do que vigora nos colégios da Polícia Militar de Goiás (CPMG). Até os
cortes de cabelo devem obedecer a certos padrões. Contato físico “que denote envolvimento de cunho amoroso” é
proibido.
— No início eu me revoltei, odiei. Hoje adoro, não troco por nada — sustenta Luísa Roriz, de 16 anos, que estuda
em Valparaíso.
O apoio entusiasmado pode esconder temor a repressão. O código classifica como transgressão disciplinar grave
“denegrir o nome do CPMG ou de qualquer de seus membros”. Quem conversa com alunos percebe o receio que têm de
fazer críticas. Estudantes que davam entrevista ao GLOBO foram interpeladas por uma policial da equipe disciplinar no
momento em que uma delas reclamava da exigência de ficar em pé durante solenidades.
— Não há dúvida de que a escola, para funcionar bem, deve ter normas claras e ser exigente. Mas isso nada tem
a ver com militarização — critica Wanderson Ferreira Alves, professor de políticas educacionais na Universidade Federal
de Goiás (UFG). — Experiências exitosas no mundo fizeram o caminho inverso, aproximando a escola da comunidade e
horizontalizando relações hierárquicas.
Frederico Marinho, pesquisador de segurança pública na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), chama a
transferência de escolas para a polícia de “maquiagem ideológica”, “tentativa de doutrinação dos alunos” e “aberração”:
— Não tem nada a ver com segurança. Diretor do Colégio Fernando Pessoa, o capitão Francisco dos Santos Silva
defende o modelo adotado pelo governo de Marconi Perillo (PSDB). Ele é formado em Pedagogia e foi professor da rede
estadual antes de se tornar policial. E diz que um dos objetivos é melhorar a nota da escola no Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), método avaliador do Ministério da Educação.
— O caminho é simples: a disciplina consciente. A gente faz (o aluno) pegar o gosto (pelo estudo). No sábado
tem grupo de estudo na biblioteca. Em breve, vamos começar um cursinho para o Enem (Exame Nacional do Ensino
Médio) — afirma. — Gírias como “ô, véio” não podem (ser empregadas). Aqui a gente só usa a norma culta.
Diferentemente do que ocorre na rede pública, os colégios da PM goiana (aos quais se somaram os dois de
Valparaíso e Novo Gama) cobram uma contribuição “voluntária” de R$ 40 a R$ 70 mensais. O dinheiro é administrado
pela Associação de Pais da unidade e, segundo a PM, destinado a melhorias na infraestrutura, em equipamentos e na
contratação de professores de reforço. O Ministério Público em Valparaíso, contudo, acionou a Justiça no início do ano,
devido a informações de que o pagamento da taxa seria compulsório, assim como a exigência de uso de uniforme, um
kit de R$ 400. Uma liminar da Justiça garantiu o caráter espontâneo da taxa. O comandante de Ensino da PM de Goiás,
coronel Júlio César Mota, sustenta que houve um mal entendido e que a contribuição é voluntária:
— Quando o pai percebe que a contribuição está transformando a escola, a adesão é muito maior. Chega a 100%
em algumas unidades. O pedreiro Cleuber Bispo da Silva, de 44 anos, diz que faz questão de pagar.
— Meu menino mudou de comportamento. Passou até a arrumar mais o quarto — descreve o pedreiro, cujo filho,
de 11 anos, está no 6º ano do ensino fundamental do Colégio Fernando Pessoa. O coordenador geral da rede
Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, avalia como “um desastre” o processo que está sendo
registrado na rede estadual de Goiás:
— Trabalhei em escolas públicas nas regiões mais violentas de São Paulo e acompanhava as rondas que a
polícia fazia. Elas já eram temerárias... Imagine uma administração da PM! A polícia não faz bem nem seu trabalho de
segurança pública, que dirá educação. Essa medida reforça o sentimento de desigualdade entre as escolas. É um
instrumento antirrrepublicano. Precisamos combater a desigualdade, não institucionalizá-la.
Outro a condenar a medida é o ex-comandante do Batalhão de Operações Especiais (Bope) do Rio de Janeiro e
antropólogo Paulo Storani.
— É a certificação do fracasso de um processo pedagógico no Brasil. É aquele pensamento: “ah, não temos
como resolver o problema? Então chama a polícia”. Estão dando o gerenciamento da escola a um órgão que não tem
essa função — raciocina. — A população tinha uma expectativa, é o desespero de querer qualquer coisa para melhorar
uma situação. Pode melhorar em curto prazo, porque cria disciplina, mas não resolve nada a longo prazo.
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